24.10.10

NA PAZ DA VELHA ABIDOS

Muito mais de sete mil anos antes que Maomé levasse às tribos nômades da Arábia o culto de um só Deus em toda sua pureza espiritual, no Egito, o país do céu transparente, floresceu uma religião cujos adeptos esculpiram gigantescos ídolos de pedra que Maomé odiava. E não obstante, os homens mais instruídos dessa religião adoraram o mesmo Deus Incognoscível que o Profeta do Islam; seu culto não foi simples idolatria. Os eruditos egiptólogos hodiernos, por mais que se esforçassem, não puderam dizer-nos algo mais sobre essa religião, porque ela pertence à pré-história, à época tão escassa em material que os mais estudiosos não conseguem tirar o véu que a oculta, e limitam-se a expor conjeturas cautelosas acerca de seu povo e acontecimentos.
Há lugares no Egito moderno, como por exemplo em Luxor, onde se encontram lado a lado o templo antigo e a recente mesquita muçulmana, oferecendo o impressionante contraste, aliás característico neste país.
Enquanto escrevo estas linhas, parece-me ouvir um galope de cavalos e, com os olhos de minha mente, ver os invasores árabes cavalgando e levando por todo o Egito o estandarte verde do Profeta. O tempo passa com uma paciência carregada de presságios... e o verde do estandarte cede lugar ao vermelho, branco e azul para voltar novamente ao verde. Mas, abafado por todas essas mudanças, o som do sistro dos templos antigos nunca deixou de ressoar.
O Egito não pode livrar-se do cunho da sua fé primitiva. Mercê do maravilhoso labor dos arqueólogos, o passado renasce diante de nós qual Fênix. Essas tangíveis relíquias de pedra recordam ao Egito o Passado, ao qual, por vezes se aferra, mas na maioria das vezes ignora.
Embora a fronteira entre o Passado e o Presente seja imprecisa, a atmosfera daqueles povos desaparecidos e seu culto extinto vibra ainda, suspensa sobre o país, e qualquer pessoa sensível atesta te-la indubitàvelmente sentido. Se seus templos decaíram tristemente, muitos deles destruídos ou sem tetos, albergando morcegos de largas asas, revoluteando à noite por entre as colunas; se daqueles homens ficaram apenas uns poucos corpos inumados para dar testemunho da sua existência (corpos dos quais foram retirados entranhas e sangue e que hábeis embalsamantes transformaram em múmias enfaixadas), muitos dos seus espíritos pairam nos lugares que freqüentaram e amaram em vida. O poder dos chamados mortos persiste no Egito, mais do que em qualquer outro país que conheço.
Senti em Abidos essa presença sutil numa sala de colunas do templo de Seti. Sentei-me num dos sete nichos, com as pernas cruzadas, para meditar. As estranhas figuras pintadas nas paredes em volta olhavam-me fixamente. Após duas horas de viagem pela baixada, atravessando plantações de cana e campos de favais, deixei o agradável, fresco e vivificante ar da alvorada (porque havia saído antes do amanhecer) e penetrei o limiar das ruínas do velho santuário construído por Seti, o primeiro dos Faraós. Não demorei em sentir-me subjugado por uma poderosa sensação do passado. Tão logo me sentei no nicho, projetaram-se na minha mente visões de uma época desvanecida.
Involuntàriamente, vi procissões desfilando pelo chão de pedra, com passos medidos e ritmados, dirigindo-se ao recinto do altar. Senti a forte vibração daqueles sacerdotes-magos que fizeram desse lugar um foco para atrair bênçãos de Osíris, deus que representavam com uma coifa de tríplice ornato posta no alto da cabeça. Ainda suas inovações ecoam através dos céus pelos séculos afora. A grande calma da sua presença começou a envolver-me e encantar-me; não demorou que suas asas benévolas me envolvessem, e senti minha existência terrena, cheia de desejos, deslisar-se como areia entre os dedos.
Bem disse Estrabão, o clássico geógrafo, quando escrevia referindo-se à sua própria época coberta de pó: “Em Abidos adora-se Osíris, mas no templo não se permite cantores nem tocar sistro ou flauta no início das cerimônias celebradas em sua honra, como é de uso fazer no culto ritual aos deuses...” A paz impregnou as brancas paredes da sala, paz acalentada de sonhos, cuja delícia o mundo exterior não conhece e nem pode compreender. A Marta dos bulícios e atropelos recebeu reprimenda de Jesus; a Maria tranqüila e compenetrada, o seu elogio. Nossas melhores horas não as passamos em algazarra e agitação, mas, sim, quando a serenidade desce sobre a alma e quando entramos em íntima comunhão com a Felicidade, Sabedoria e o Poder Divino.
Fiquei sentado no pequeno nicho na parede, como talvez algum sacerdote de tez morena se havia sentado centenas de gerações passadas, deixando que nesse intervalo sua aprazível influência me envolvesse em seu encanto. Oh! Que satisfação de estar só e esquecer os ruídos que o progresso traz como séqüito inexorável de seus muitos benefícios! E que prazer olvidar o egoísmo grosseiro, os mal-entendidos inevitáveis, ódios indignos, rivalidades aviltantes que, quando regressamos ao mundo dos homens não iluminados, nos alçam à cabeça, feitos cobras para nos atacar e picar.
Por que voltar, então?
Consideramos a solidão como se fosse a maldição dos céus, mas quando adquirimos a sabedoria, aprendemos a estima-la e recebe-la como uma bênção. Devemos escalar o monte Everest dos nossos sonhos e acostumar-nos a viver nos píncaros da solidão. Porque, se buscarmos a alma na multidão, só encontraremos o vácuo; se buscarmos a verdade, nada acharemos a não ser a hipocrisia.
A sociedade é da alma e não do corpo. Podemos passar uma noite na sala de espera de uma estação entre quarenta pessoas, e sentirmo-nos tão sós como se estivéssemos no Saara. Os corpos poderão aproximar-se, mas se os corações e as mentes permanecerem ausentes, continuaremos sós e isolados. Achamo-nos obrigados a cumprir as formalidades da etiqueta e, quando alguém nos convida, vamos visita-lo. O anfitrião não está presente para nos dar as boas-vindas, pois ele limitou ao corpo a obrigação de receber-nos, sabendo perfeitamente que entre nossas mentes há um abismo tão grande que não poderemos entender. Travar relações com alguém dessa espécie é melhor não fazer coisa alguma. Quem Deus separou, o homem não deve unir!
Tomei passagem para o Império Celestial, esse grande país onde não se infiltram notícias mesquinhas da nossa vida trivial. Será dizer que tenho ódio aos meus semelhantes? Pode ser chamado de misantropo o homem que brinca com as crianças e reparte suas moedas com os pobres?
Por que não ficar longe de tudo e aceitar a aventura de uma existência solitária, retirada, livre da ansiedade, nos lugares tranqüilos, como este do santuário de Abidos?
Criticamos amiúde o homem que foge à sociedade em busca de vida mais elevada, sem pensar que talvez ao regressar ele possa trazer algumas novas para seus semelhantes. Voltou-se à memória a solene promessa de regressar que me arrancaram aquêles a quem respeito ou melhor, venero, e da qual sabia não poder escapar. Todavia, não me entristeci porque também sabia que, quando o mundo me cansasse, poderia submergir-me no poço profundo do meu ser e sair renovado, satisfeito e feliz. Naquele grande silêncio sagrado dentro de mim, podia ouvir a voz clara de Deus, como nesse grande silêncio do templo podia ouvir as vozes mais débeis dos deuses desaparecidos. Quando voltamos ao mundo exterior, vagamos entre as sombras e incertezas; entrando em nosso próprio interior, movemo-nos entre sublimes certezas e beatitudes eternas. “Aquieta-te” – disse o Salmista – “e sabe que sou Deus”!
Perdemos a velha arte de ficar a sós e não sabemos extrair a felicidade dos nossos recursos internos; por isso, compramos distrações ou recorremos a outras pessoas para nos distrair, momentaneamente. E, não só não sabemos estar sós, como também não sabemos ficar quietos. Entretanto, se pudéssemos manter o corpo durante algum tempo na mesma posição e usar nossa mente de maneira adequada, lograríamos conquistar a sabedoria profunda, digna de ser possuída e saturar nossos corações de paz salutífera..
Fiquei quase duas horas sentado até que o tique-taque contínuo do relógio se fez ouvir novamente. Abri os olhos.
Mirei as grossas colunas da sala sustentando o pesado teto, e que pareciam gigantescas plantas de papiro apoiando sólidas cúpulas. Parte das colunas estava iluminada pelos raios do sol, que penetravam aqui e acolá pelo teto esburacado, realçando os baixos-relevos e pinturas. Aqui estava o Faraó em atitude cerimonial, frente a um dos seus deuses favoritos, ou levado à presença do próprio Osíris; fileiras de hieróglifos, uma após outra de conteúdo misterioso para os não iniciados, acompanhavam cenas pictóricas. Séculos se haviam passado, quando Seti em pessoa contemplava essas mesmas colunas de bases salientes, cobertas de inscrições.
Estiquei as pernas entumecidas e levantei-me para percorrer o resto do templo. Atravessei câmaras altas e santuários abobadados, e aproximei-me para estudar mais de perto os murais e pinturas, cujas cores, azul, verde, vermelha e amarela se destacavam sobre a branca e marmórea pedra calcárea, com tanta frescura como quando saíram das mãos dos artistas, há mais de três mil e quinhentos anos.
O toque delicado da beleza feminina se estraga, mais cedo ou mais tarde, pelo impiedoso assalto do tempo, mas a dura e pétrea beleza dos rostos femininos dessas pinturas parecia desafiar seus embates. Que segredos possuíam aqueles antigos pintores ao preparar as tintas, cujos vermelhos brilhantes e azuis claros conservavam sua frescura, e por que não podem ser imitados atualmente? A viva coloração parecia ainda escorrer dos pincéis, os finos desenhos e os esplêndidos cinzelados dos escultores daqueles tempos ficaram os mesmos nas brancas paredes de pedra, frente às quais eu permanecia meditando, testemunhos tangíveis daquela vida misteriosa do Egito desaparecido. Por toda a parte se via o Rei rendendo culto aos grandes deuses e recebendo em troca as bênçãos. Esse templo singular não estava dedicado integralmente, como era costume, a uma divindade especial; ali se honravam vários deuses do Panteão egípcio. Cada qual tinha seu santuário e estava representado em alguma cena religiosa, pintada ou esculpida na parede; contudo, Osíris conservava a supremacia. Havia sete recintos abobadados, formados de grandes blocos de granito, cada um cruzando-se com outro, dedicados a Horus e Ísis, Ptah e Harakt, entre outros.
Ísis, a grande deusa velada, Mãe da Sabedoria, com toda sua ternura maternal, tocava o ombro do Faraó devoto. Ao lado dela flutuava seu barca sagrado em cujo centro havia, finamente trabalhado, um oratório adornado de flôres de lótus; as águas tranqüilas e os ventos obedientes estavam dispostos a leva-lo às regiões paradisíacas dos deuses, deusas e alguns seres humanos que como deuses desciam à Terra para abençoar.
Os incautos, olhando essas pinturas, pensam como puderam os antigos egípcios ser tão estúpidos em acreditar nessas coisas, nessas divindades, inexistentes, nesses barcos sagrados que transportavam para o céu os favoritos dos deuses! A verdade é que os barcos eram apenas símbolos, elementos de uma linguagem sacra, que o escol do mundo antigo entendia perfeitamente, mas o mundo moderno difìcilmente consegue entender. Certamente, essas divindades estavam longe de ser uma ficção. No Universo infinito há lugar para outros sêres, superiores ao homem e, embora adotassem formas e nomes diversos em diferentes épocas, essas deidades não mudaram seu caráter específico.
Eu creio com Plutarco, que diz::
Não há deuses diferentes nos diferentes povos, quer sejam bárbaros ou gregos, pois mesmo o sol, o céu, a terra e o mar que são propriedades comuns de todos os homens, são designados de modo diverso nos diferentes países.
Muito embora, aparentemente, hajam hoje desaparecido de nossa visão, suas atividades não podem findar. Somente são menos tangíveis para nossos sentidos físicos, mas nem por isso estamos fora da sua esfera de ação. Embora não desçam mais em densas formas terrenas, continuam vigiando o mundo que foi entregue aos seus cuidados, fiscalizando o progresso da evolução humana. Eu creio em deuses como acreditavam esses antigos egípcios, considerando-os sêres super-humanos que custodiam a evolução do universo e do bem-estar da humanidade, dirigem o destino oculto dos povos e guiam seus mais importantes assuntos; enfim, encaminham todos os homens e todas as coisas à última finalidade de toda a criação – a perfeição suprema.
Esses sete santuários, consagrados aos cultos, presenciaram holocaustos de fogo e água, oferendas de incenso, posturas e orações. Cerimônias que foram idólatras ou espirituais, segundo a compreensão e a intenção que davam aqueles que nelas participavam. O homem que via nesses atos físicos substitutos satisfatórios das suas virtudes íntimas, era um idólatra, enquanto o homem que os considerava meras lembranças simbólicas da devoção e sacrifícios que diàriamente oferecia a seu Criador, sentia-se fortalecido na verdadeira fé religiosa. O sacerdote empregando símbolos que fazem parte do ritual da magia, poder concedido por tradição, assumia grande responsabilidade, porque atraía fôrças tanto diabólicas como angelicais para a assembléia que presenciava o ritual.
A entrada era proibida à massa nesses sete santuários internos, cujos altares desaparecidos, outrora reluziam de ouro, e na verdade, nos inúmeros templos egípcios ninguém se atrevia a passar além dos espaçosos pátios. Dessa maneira, a religião tomou um caráter particular em que o papel preponderante era desempenhado pelo exclusivismo sacerdotal. Pensei na liberdade que reina na mesquita ou na igreja e compreendi, mais uma vez, porque os sacerdotes que se haviam excedido em seus esforços por conquistar e conservar o poder, acabaram por perder até a menor partícula de sua influência. “Dá de graça o que de graça recebeste”; essa sentença não tinha aplicação naqueles tempos. Os sacerdotes recebiam e, com grande reserva e cautela, davam em parcimônia.
Que estranhas mudanças traz consigo o tempo, pensei. O sarcófago do homem que edificou o templo, o esquife vazio de alabastro da múmia do Faraó Seti, ficou mais de cinco mil quilômetros de distância, num pequeno museu estabelecido em Inn Fields de Lincoln, entre os advogados e corretores imobiliários de Londres. Se o tivessem enterrado trinta metros mais fundo, quase podia ter escapado à acidentada viagem pela Baía de Biscaia.
Levantei os olhos para contemplar a abóbada celeste pintada de um azul escuro semeado de estrelas. Através do teto avariado pelo tempo, aqui e acolá aparecia o céu. Em nenhuma parte do mundo, disse-me a mim mesmo, tem o céu cor azul tão intensa como no Egito. Penetrei num corredor poeirento e pus-me a estudar a famosa Tabuinha de Abidos, essa lousa gravada em caracteres hieroglíficos, mencionando todos os Reis do Egito até Seti. A Tabuinha ajudou aos arqueólogos a formarem seus conhecimentos mais concretos sobre a história do país. Estavam ali, também, as figuras em baixo-relêvo do Faraó Seti junto ao seu filho, o jovem Ramsés, no ato de homenagear seus setenta e seis antepassados. A augusta cabeça do Rei, de feições acentuadas, porte altivo e cerimonioso, estava de perfil. Percorri o templo pisando na fina areia que ali cobria uma parte do solo e prossegui estudando outros baixo-relevos, pinturas envoltas de cartéis reais e fileiras de formosas inscrições hieroglíficas profundamente gravadas na pedra.
Horus, com cabeça de falcão e corpo de homem, aparecia sentado, erguido no seu trono cúbico, alto, sustentando em ambas as mãos o tríplice cetro do Egito – o chicote, o bastão encurvado de pastor e a vara de Anúbis, três insígnias simbólicas de bom governo. O chicote representava o domínio do corpo, o bastão, o controle dos sentimentos, e a vara com cabeça de chacal, o domínio do pensamento. O sólido trono cúbico indicava o domínio da natureza animal do homem. Seus ângulos retos mostravam que os iniciados devem sempre se comportar “com retidão”, donde vem a frase moderna usada na franco-maçonaria “pela conduta reta”. A franco-maçonaria possui tradição ancestral mais antiga do que o supõem os próprios maçons. “Faze-te reto para ser útil; a pedra que serve para murar não se abandona no caminho” – diz uma antiqüíssima inscrição persa de influência maçônica. Ao longo da base do trono avistava-se uma fila de cruzes ansatas – a famosa “chave dos mistérios” tanto dos egípcios como de outras raças. Para os egiptólogos, é o símbolo da vida, porém, interpretando-a mais profundamente, compreenderemos que se trata do símbolo da iniciação à imperecedoura vida superior do espírito.
O grande alvo que deviam alcançar os iniciados egípcios era o de autodomínio. É por isso que vemos com tanta freqüência nos retratos essa expressão de calma imperturbável nos rostos. Frente a Horus estava seu devoto, o Rei com as mãos estendidas cumprindo o ritual de purificação, enchendo com água o vaso adornado de lótus em flor. Lótus era uma flor sagrada no Egito, como aliás em todos os países da antiguidade. O Rei perpetuava nesse baixo-relêvo seus piedosos cuidados para com o crescimento e desenvolvimento da sua natureza espiritual. O monarca levava um avental triangular prêso à cintura, com o qual cobria os órgãos sexuais, peça que tinha exatamente o mesmo simbolismo do atual avental dos franco-maçons. Essa figura do Faraó com avental, cumprindo o ritual de sacrifício no templo diante do seu divino mestre, tem sua reprodução moderna, porquanto no século XX os maçons ainda hoje realizam seus rituais na Loja Maçônica diante do Venerável Mestre, com o avental. Abidos, a primeira sede da religião de Osíris, foi também a primeira Grande-Loja dos ritos secretos daquela religião; isto, é, dos “Mistérios”, os progenitores da primitiva Franco-maçonaria.
Caminhei por entre as grossas colunas, ouvindo o incessante gorjeio dos pardais que se aninhavam ao longo dos velos telhados. Saí do templo, dobrando para leste, entrei por uma porta que dava para uma passagem em declive, cujas paredes estavam cobertas de figuras e textos tirados do principal livro sagrado dos egípcios: O LIVRO DOS MORTOS. A passagem conduzia às criptas subterrâneas que, segundo crêem os egiptólogos, tinham sido erigidas como o cenotáfio de Seti.
Esse recintos de aparência arcaica foram descobertos sob um monte de escombros, a mais de doze metros de profundidade. A sala central era baixa e construída em forma de um gigantesco sarcófago. O teto plano e delicadamente esculpido, cujo baixo-relêvo apresentava Shu, deus do ar, levantando da terra um Faraó morto e levando-o em seus braços. Senti logo que naquela cena devia haver algum simbolismo oculto. A construção feita de enormes blocos de pedra era notável no seu conjunto. Um fosso cheio de água rodeava a cripta, isolando a nave central. É mais que provável que esse fosso se comunicava com o Nilo por algum canal subterrâneo secreto. Heródoto descreveu um lugar semelhante que, segundo lhe disseram os sacerdotes, existia debaixo da Grande Pirâmide; contudo nada pôde ser provado até agora. A misteriosa cripta de Abidos, praticamente única no seu gênero, na realidade podia ter sido construída por Seti para lhe servir de cenotáfio, porém dava-me a impressão nítida de que originalmente devia ter tido outro objetivo mais importante. Qual seria esse objetivo? Deixei momentaneamente a questão em suspenso.
Voltei à sala das colunas e sentei-me na sombra que elas projetavam. Aqui em Abidos, diziam as antigas tradições, havia sido enterrado secretamente o próprio deus-homem, Osíris, na necrópole real de Thinis, cidade que no longínquo passado ocupou este mesmo lugar. O Rei Neferhotep fez relembrar esse fato, quando, ao receber o cetro faraônico, encontrou Abidos um montão de ruínas; e sublinhou ter procurado na biblioteca sacerdotal de Heliópolis os arquivos relativos ao templo de Osíris, que antigamente estiveram nesse lugar e, segundo os quais, após estuda-los, mandou reconstruir os ritos abandonados. O sucessores de Neferhotep usaram esses documentos para reconstruir das ruínas a formosa obra, agregando-lhe novas construções. Esses Templos se ergueram entre as casas da cidade de Thinis, mas o tempo acabou por destruí-los.
No primitivo Egito, os Mistérios de Osíris constituíam uma característica destacada na religião, e Abidos era o primeiro lugar do país que os celebrava, fato que o transformou num dos lugares mais sagrados da nação; assim, as vibrações que sentia eram daquela atmosfera espiritual e não dos ritos convencionais que se efetuavam diàriamente naquele belo templo, embora posterior ao Rei Seti. A história inicial de Abidos se entrelaça com a história do próprio Osíris, cujo calendário remonta à época ignorada em que as datas esfumam no era pré-história da origem egípcia; à época anterior aos Faraós. Foram tempos em que os deuses não desertavam dos homens, quando os “semideuses”, como os chamam os historiadores egípcios, governavam o povo. É maravilhoso – ponderei – sentir através de um misterioso processo as vibrações que ficaram aqui na sublime atmosfera da pré-histórica Abidos, e podem ser captadas de novo por um receptor humano sensível.
Ali, em Abidos, foi estabelecido o primeiro santuário-mor de Osíris no Egito. Mas quem era Osíris? A lenda histórica responde com um mito fantástico e inconcebível de alguém que foi assassinado e despedaçado, e cujas partes esparsas do corpo foram misteriosamente reunidas.
Deixei o problema para que a mente o sondasse, e aguardei a resposta...
Do silêncio do passado me veio esta: Um dos grandes seres da Atlântida previu a necessidade de ser preparada uma nova residência para os seus escolhidos, espiritualmente mais jovens, e os levou para o Leste, terra em que agora fica o Egito. Havia ele alcançado o grau de elevação super-humana, própria dos semi-deuses, e era para seu povo, não somente um governante humano, mas também um deus. Levou consigo os mais seletos do continente condenado, ainda que este estivesse no apogeu da sua civilização, porque os deuses costumavam preparar novas nações muito antes que as antigas desaparecessem.
Antes do cataclismo da Atlântida, emigraram pequenos grupos de homens mais esclarecidos espiritualmente. Os que pertenciam aos impérios ocidentais partiram para a América do Sul e Central, os que eram do Império do Leste, dirigiram-se para a África e ali lançaram os alicerces da grandeza do Egito.
Viajaram em sua embarcação curvilínea com a proa na direção oriental pouco conhecida e começaram a estabelecer-se em pontos diferentes e em diversas ocasiões, na costa Euro-africana. Mas a leva, que ia sob a direção imediata de Osíris, foi conduzida ao Egito pré-histórico em cujas praias desembarcaram e, antes de prosseguir remontando o Nilo, passaram pelas três Pirâmides e a Esfinge, produtos das primeiras levas emigratórias dos atlantes, e navegaram até que Osíris lhes ordenou deterem-se, não muito longe da atual Abidos. Encontraram o norte do Egito já habitado por uma população aborígine que os aceitou pacificamente e, além do mais, devido à superior cultura dos recém-chegados, permitiu que lhe impusessem seus costumes e domínio. Assim nasceu a civilização do Baixo-Egito, e Osíris, antes de abandonar seu povo, instituiu-lhe os Mistérios religiosos, deixando-os como um legado duradouro para perpetuar seu nome, sua obra e sua doutrina. Esses homens, esses egípcios pré-históricos, possuíam, portanto, cultura e civilização muito antes que Londres surgisse dos seus pântanos. Muito depois do desaparecimento de Osíris, e quando sua religião precisava ser revitalizada e codificada, surgiu outro grande mestre, um “semideus”, chamado Thoth, que estabeleceu em Sais um novo centro, o segundo, dos Mistérios de Osíris. Tudo isso ocorreu entre as comunidades aboríginas do Egito pré-histórico.
Donde então surgiu a lenda do assassinato de Osíris?
Não achei no momento a resposta e decidi aguardar uma outra meditação.
Retirei-me do templo caminhando pelo calçamento desigual do solo, cuja superfície há muito tempo havia sido desgastada. Antigamente estava recoberta com belíssimos mosaicos, dos quais agora não resta um só fragmento. Lancei um último olhar às formosas colunas cujos capitéis em florões sustentaram durante tantos séculos grande vigas de pedra talhada do teto e ainda continuavam suportando-as galhardamente. Assim dei por terminada minha visita neste santuário da antiguidade.
Saí do pátio e deixei as dependências do templo. Sob a ofuscante luz do meio-dia, pisei escolhendo caminho entre as pedras e pós, destroços de rocha e montes de areia, lajes esburacadas e restos disforme de colunatas, onde os espinheiros verdes e sarças espinhosas se entrelaçam, tomando conta das ruínas. Aproveitei um ponto favorável, e mais uma vez dei uma última mirada no deserto templo milenar.
Ali se erguia em sua brancura imaculada, com doze colunas dispersas na entrada e uma porta estreita e simples. Que aspecto diferente e grandioso devia ter, quando esteve no pináculo da glória! A arquitetura no Egito foi arte hierática. A religião era um fio no qual os artistas e artesãos enfiavam as contas de suas magníficas obras.
Seti, orgulhoso da sua própria façanha, mandou gravar numa lápide: “O interior do palácio está embelezado com ouro fino, puro, trazido diretamente das minas. Ao velo, o coração se extasia de júbilo e o povo se prosterna submisso. Sua nobreza é o que há de mais esplendoroso, seus portais, desmedidamente grandes, são de pinho do bosque, dourados com ouro fino e nas partes de dentro blindados de bronze. As grandes pilastras são de pedra de Anu e seu revestimento de granito; sua beleza comove até Ra no horizonte.
Assim era Abidos considerada cemitério do deus Osíris e, na realidade, o primeiro centro egípcio dos “sepultamentos” para iniciação aos Mistérios.
Enquanto descia ao povoado, levando comigo meus sonhos íntimos do passado, os pássaros cantavam ainda, entre os avariados telhados do templo, este último sucesso do primeiro santuário de Osíris.
Gostei imensamente do lugar, cujo feitiço intangível deixado em mim por mãos invisíveis, chamar-me-á a voltar repetidas e mais repetidas vezes. Esses lugares me escravisam mental e fisicamente, e de seu domínio, penso, não poderei escapar.
Quando nas horas efêmeras da vida consigo apanhar alguns momentos imortais, compreendo, então, que não vivi minha existência em vão. Em Abidos senti alguns desses momentos.

Do Livro – O Egito Secreto – Paul Brunton.

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