26.6.11

HISTÓRIA DA UMBANDA - CAPÍTULO IV

D.PEDRO II É PAI DOS BRANCOS

Os índios Jê-Timbira narram a origem do homem branco com base nas aventuras de Aukê:

Uma rapariga de pátio de nome Amcukwéi estava grávida. Certo dia, quando em companhia de muitas outras tomava banho, ouviu de repente o grito de “preá”. Admirada, olhou para todos os lados sem descobrir de onde o ruído partira. Logo depois escutou-o novamente. Voltando para casa, deitou-se na cama de varas, e o grito se fez ouvir pela terceira vez, reconhecendo ela, agora, que o som partira do interior do seu próprio corpo. Foi a criança quem falou: “Minha mãe, tu já estás cansada de me carregar?”. “Sim, meu filho”, respondeu ela, “saia [...]” Amchkwéi começou a sentir as dores de parto e foi só para o mato. Deitando folhas de pati no leito do chão prometeu: “Se fores menino eu te matarei, se fores menina eu te criarei [...]”. Nasceu um menino e Amcukwéi cumpriu sua palavra: cavou um buraco, sepultou seu filho, ainda vivo, e voltou para casa. Sua mãe, vendo-a chegar, perguntou pela criança e, quando se inteirou do sucedido, ralhou com a filha: que tivesse trazido o menino porque ela, a avó, o criaria. Não contente com isso, a mãe de Amcukwéi desenterrou a criança e depois de lava-la trouxe-a para casa. Amcukwéi não lhe quis dar de mamar, mas a avó o amamentou. Foi então que o pequeno Aukê levantou-se e disse:
“Então não me queres criar?”. Amcukwéi, muito assustada, respondeu: “Sim, eu te criarei”.
Aukê cresceu rapidamente. Ele possuía o dom de transformar-se em qualquer animal [...] Então, um dia, seu tio resolveu mata-lo. Estando o menino sentado no chão comendo bolo de carne, o tio bateu nele, forte e por trás, com um cassetete, enterrando-o atrás da morada. Na manhã seguinte, porém, o menino, cheio de terra, voltou [...] Seu tio resolveu desfazer-se dele de outra maneira: chamou-o para buscar mel [...] Chegando ao cume da terceira serra, o irmão de Amcukwéi agarrou o menino, atirando-o em seguida no abismo. Mas Aukê transformou-se em folha seca e desceu vagarosamente em espirais até o chão [...] O tio, no entanto, logo concebeu um novo plano para matar Aukê: sentando-o numa esteira, deu-lhe comida [...] Foi então que o abateu pelas costas, usando um cassetete, e queimou-lhe o corpo inteiro. Abandonaram em seguida a aldeia, mudando-se para um lugar bem longe.
Algum tempo depois Amcukwéi pediu aos chefes e conselheiros que mandassem buscar as cinzas de Aukê [...] Quando os dois chegaram ao lugar, descobriram que Aukê tinha se transformado em homem branco; construíra uma casa grande e agora criava negros [...] e cavalos de madeira do bacuri. O rapaz chamou os dois enviados e mostrou-lhes a sua fazenda. Depois mandou chamar Amcukwéi para que morasse com ele. Aukê é agora o Imperador d. Pedro II, pai dos brancos. [grifos meus].

Qualquer história permite, por certo, várias narrativas e inúmeras leituras. Neste caso, o mito de Aukê ajuda a entender a monarquia brasileira como uma experiência partilhada por diversas visões e sujeita a muitas recuperações. No caso, Aukê torna-se branco, o Branco por excelência, senhor e distribuidor de riquezas, identificado, por sua vez, com d. Pedro II. Assim, se o mito anuncia uma situação de desigualdade, remete também a uma sentido que lhe é anterior ao misturar cosmologias. Com efeito, o monarca parece aglutinar nesse contexto representações distintas. Pai de todos os brancos, na versão do mito jê; d. Sebastião nos trópicos, em um transplante do mito português introduzido por Bonifácio, que, leitor de Vieria, encarna em um Bragança o papel de “encoberto”; rei que divide a realeza com o príncipe Oba, o qual percorre as ruas do Rio; paródia do rei do Congo com sua rainha Ginga – d. Pedro II, por meio dessas releituras de época, é um “monarca com muitas coroas”. Homenageado em algumas festas, tal qual o rei dos reis, em outras é esquecido ou torna-se personagem subalterno. Às vezes o cortejo passa diretamente por d. Pedro, e desvia em sua homenagem; outras vezes a procissão segue longe e obriga o monarca a tomar parte dela como figurante quase secundário.
Imperador que empresta o nome à festa do Divino – na feliz tradução de José Bonifácio -, d. Pedro II compactuou com uma cultura que, ao mesmo tempo que se europeizou com sua presença, tornou-se mestiça, negra e indígena no convívio, por certo desigual, de tantas culturas. Na dinâmica interna entre estas vingaram a reelaboração e a criação de novas imagens e rituais.
Afinal, como explicar a permanência, por quase sessenta anos, de uma monarquia rodeada de repúblicas por todos os lados? Como entender o enraizamento de uma realeza Bragança, mas também Bourbon e Hadsburgo, em um ambiente tropical, cercado de indígenas, negros e mestiços? A resposta é estranhar o que parece tão natural em nossos compêndios de história. Longe das luxuosas cortes européias, a capital da monarquia brasileira, em 1838, possuía cerca de 37 mil escravos numa população total de 97 mil habitantes, e em 1849, em uma população de 206 mil pessoas, 79 mil cativos. Além disso, 75% dos escravos eram, em média, africanos, dado que indica a importância da população de cor na cidade do Rio de Janeiro. Por outro lado, os grupos indígenas, tão afastados da corte e dizimados de forma bastante sistemática, eram convertidos, porém, em símbolo da monarquia. Distantes enquanto realidade, ganhavam vida na representação; nos quadros e alegorias, nas esculturas e nos títulos de nobreza.
Nesse ambiente, a corte e os paços representavam ilhas com pretensões européias cercadas de mares tropicais, e sobretudo africanos, por todos os lados. Testemunhos de época falam de como as ruas eram tomadas pelos negros – escravos ou não - , que se dedicavam às mais diferentes ocupações e preenchiam os lugares com seus gestos, cores e expressões tão peculiares. “Se não soubesse que ela fica no Brasil poder-se-ia toma-la sem muita imaginação como uma capital africana, residência de poderoso príncipe negro, na qual passa inteiramente despercebida uma população de forasteiros brancos puros. Tudo parece negro [...]”, dizia Lallemant em 1859.
D. Pedro II era, portanto, imperador, o grande monarca e “pai dos brancos”, mas aparecia muitas vezes, em meio a outras divindades. Afinal, reis e príncipes africanos “pontilham a história dos escravos trazidos para a América” – com direito a beija-mão e salamaleques, como bem mostrou Debret em suas descrições de funerais de príncipes africanos no Rio de Janeiro.
Com efeito, as relações entre Brasil e África – oficiais ou não – caracterizaram-se, desde os tempos coloniais, por uma troca mais alargada do que se pode, à primeira vista, imaginar. Partes opostas do mesmo comércio negreiro de seres humanos, centralizado por Portugal, entre dois continentes desenvolveram-se ligações que excederam o aspecto exclusivamente econômico. Segundo Alberto da Costa e Silva, “a África recebeu e africanizou a rede, a mandioca e o milho, enquanto o Brasil fazia seus o dendê, a malagueta e a panaria da Costa”. Na verdade, as trocas se deram nas duas direções, e dos dois lados do Atlântico ficava-se sabendo o que acontecia. Não é à toa que foram dois reis africanos – Oba Psemwede, do Benim, e Ologum Ajan, de Eko, Onim ou Lagos – os primeiros a reconhecer a independência do Brasil.
É por isso mesmo que, em pleno território brasileiro, reis e nobres africanos, vendidos como escravos por motivos de guerra ou por simples desafetos, desterrados em função do “infame tráfico”, buscaram reconstruir estruturas políticas e religiosas de suas terras distantes. Caso famoso é o de Nan Agotiné, a mãe do rei Guezô, do Danxomé, Dangomé, Daomei ou Daomé,que, vendida por traficantes, teria refeito seus altares e sua corte na Casa das Minas, em São Luiz do Maranhão. Outros voltaram à terra, como o príncipe Fruku, que viveu no Brasil durante 24 anos e retrnou à Costa dos Escravos com o nome de d. Jerônimo. Lá chegando, disputou o trono do Danxomé e só por pouco perdeu para Agonglo. Como diz Verger, “africanos do Brasil e brasileiros da África [...] conseqüência imprevista do fluxo e refluxo do tráfico de escravos [...]”.
Além dos príncipes oriundos de elites dirigentes na África, habitaram no Brasil os reis alegóricos, das congadas, cavalhadas e batuques, que, no curto espaço das festas, representavam a autoridade máxima então constituída, isso para não falar das chefias tribais. Essa convivência entre tantos reis – imaginários ou não – permitia o surgimento de compreensões diferentes da realeza e mesmo de certa recepção positiva da monarquia. Escreve João José Reis: “Havia uma mentalidade monarquista, por assim dizer, circulando entre os negros, que parece ter sido recriação de concepções africanas de liderança, reforçadas em uma colônia, e depois um país, governado por cabeças coroadas. É aliás conhecida a popularidade de d. Pedro II entre os negros cariocas [...] A visão do rei como fonte de justiça [...] existia igualmente na América, inclusive entre os escravos”.
Por outro lado, na medida em que a realeza representava uma instância de poder comum a diferentes universos culturais, nos rituais várias monarquias se encontravam, a despeito da total ausência de liberdade nas esferas sociais e políticas. Os “reis” que habitavam o Brasil tinham uma convivência não democrática mas ao menos freqüente: “o rei Baltasar, o rei do Congo e o vice-rei de Portugal” iam homenagear o Imperador do Divino, fazendo o mesmo com os reis magos, no dia de Reis. Essas “majestades” também honraram o príncipe d. João VI na ocasião de sua coroação. Na Independência, o “rei Carlos Magno e seus doze pares de França” homenagearam o imperador Pedro I com espetáculos de cavalhadas. E que não se esqueça do rei Oba, que todo sábado se dirigia ao palácio a fim de beijar a mão do imperador Pedro II, nos últimos anos do Império.
Esses reis dialogavam não só entre si mas também com os santos. Com efeito, no Brasil religião e realeza estão ligadas de forma muito peculiar. Aqui não se atribui ao rei poderes mágicos ou transcedentais, como no caso clássico francês dos reis taumaturgos estudados por Bloch, porém de toda maneira o ritual local aprimora o “fraco” cerimonial dos Bragança. No Brasil, os imperadores passam a ser ungidos e sagrados, numa tentativa de dar sacralidade a uma tradição cuja inspiração ara antiga mas a realização datada. Nesse movimento, ao mesmo tempo que os monarcas ganham santidade, os santos, quando muito adorados, ganham realeza no Brasil. O Divino Espírito Santo recebe um império, o deus Momo vira, anos mais tarde, rei Momo. De qualquer modo, mantos imperiais convivem com mantos divinos, e o imaginário da realeza acaba permeando fortemente o catolicismo brasileiro, da mesma maneira que uma série de manifestações populares, como o Carnaval – com seus impérios, reis, rainhas e enredos -, se nutre de cenas da monarquia.
Entre tantas “coroas e santos” não seria mesmo o caso de eleger uma interpretação fiel da realeza européia e de suas tradições, mas sobretudo de entender como nesse ambiente, ainda que com base em leituras diferentes, a hierarquia e a autoridade real eram retraduzidas e compreendidas.
É Gilberto Freyre, em seu texto “Dom PedroII, imperador cinzento de uma terra de sol tropical”, quem conclui que o monarca, apesar de sua alma protestante, adotou, em determinados períodos do Império, uma ritualística local. Com seu manto verde como a nação, a coroa e a murça de penas de papo de tucano, mais próprios a um “Luiz XIV dos trópicos”, d. Pedro II dialogava com seus súditos, assim como eles o reimaginavam valendo-se de leituras particulares.
Desse modo, sem esquecer a existência das relações de dominação, inegavelmente assimétricas entre senhores e escravos, é possível voltar os olhos para o diálogo entre categorias culturais distintas e perceber a presença de elementos comuns, se não em seu conteúdo ao menos em sua forma, que permitem entender o estabelecimento de um repertório local e particular de imagens da monarquia.
Para citar apenas alguns elementos isolados: o que significa inventar uma corte em território americano, buscar todas as regras na mais fiel tradição medieval européia, mas adotar nomes e títulos indígenas? Como explicar um príncipe que se veste com o rigor majestático das grandes cortes, porém introduz uma murça de penas de papo de tucano, tal qual um cacique, e um manto com ramos de café e tabaco? O que dizer da famosa Fazenda de Santa Cruz, tirada dos jesuítas quando de sua expulsão e protegida pelos monarcas portugueses aqui residentes, que agrupava um número elevado de escravos-cantores de música sacra? De que maneira entender um imperador que sentava na frente dos estandes brasileiros das exposições universais – verdadeiras festa de exibição dos feitos tecnológicos e industriais das nações capitalista – e exibia sua coroa ao lado de produtos indígenas e da arte popular?
Por outro lado, se for correta a versão que diz ser o termo império não só uma referência à extensão do território, ou uma homenagem de d. Pedro I a Napoleão – segundo seus biógrafos, sua maior influência -. Mas uma alusão ao imperador da festa do Divino, estaríamos diante de um regime que desde os momentos de fundação dialogava com as culturas locais, criando novos significados para tradições longínquas.
Cada um desses temas – que resultaram em capítulos específicos – fala em seu conjunto de uma “monarquia tropical”, entendida como uma exceção no contexto local e exótica diante dos exemplos europeus. Na verdade, no interior do continente americano. O Brasil era visto com desconfiança pelas demais republicas, para as quais era difícil entender a opção pelo regime monárquico e sua continuidade. Mesmo levando-se em conta o acalentado sonho de Bolívar – que não só se inclinou para a monarquia como se deparou com a fidelidade da maior parte da população à Coroa -. A experiência do general Iturbide no México em 1822, ou mesmo o frágil Império haitiano de Dessalines, que durou de 1804 a 1806, para não falar da dramática e breve experiência do arquiduque austríaco Maximiliano (primo de D.Pedro II, fuzilado em junho de 1867), o fato é que, como afirma Francisco Iglesias, todas as demais experiências monárquicas em território americano têm caráter “quase tribal e anedótico, quando não são farsas trágicas como no caso mexicano”. A partir da doutrina Monroe (1823) – mais conhecida por seu lema “A América para os americanos” – a imagem do regime monárquico ficou associada a alguns países europeus, ao passo que aumentou a ingerência norte-americana no sentido de coibir o surgimento de realezas nas Américas.
Cercado de repúblicas. O modelo monárquico brasileiro contava, portanto, com obstáculos adicionais para o seu reconhecimento: de um lado, o boicote das demais nações americanas; de outro, a difícil comunicação com os países europeus (desconfiados da relação estreita que o Estado imperial continuava mantendo com os países africanos e com o comércio negreiro).
Dessa forma, mesmo após o reconhecimento inglês e o português, parecia necessário a afirmação de uma imagem que distanciasse a monarquia brasileira da idéia de anarquia p tão comumente associada às repúblicas americanas -, do “comércio de almas” e de um sistema escravocrata persistente e difundido, sobre o qual se estruturavam a sociedade e a economia local. É justamente por isso que desde os primeiros anos de independência houve um investimento evidente na divulgação de uma representação ao mesmo tempo comum e peculiar desse longínquo império. Comum, na medida em que se procurou afirmar todo o tempo a feição européia de nossa monarquia – aparentada não só aos Bragança como aos Bourbon e Hadsburgo – e o caráter civilizacional do Império, afeito às novas tecnologias e idéias de progresso. Peculiar, já que havia o Atlântico a nos separar e toda uma realidade social e geográfica a nos distinguir. Velho conhecido dos viajantes, o Brasil foi sempre destacado como o local da “grande flora” – com sua vegetação edênica -, mas também como o país da miscigenação extremada, dos indígenas e da escravidão. Não havia, pois, como deixar de lado a faceta tropical do jovem Império.
Na tentativa de garantir e criar uma nova nação, desvinculada da “pátria”, que era ainda portuguesa, as elites do sul do país apostaram claramente, portanto, na monarquia e na conformação de uma ritualística local. A realeza aparecia, em tal contexto, como único sistema capaz de assegurar a unidade do vasto território e impedir o fantasma do desmembramento vivido pelas ex-colônias espanholas. É nesse sentido que a monarquia se transforma em um símbolo fundamental em face da fragilidade da situação. Transcendendo a figura humana do rei, as representações simbólicas do poder imperial evocavam elementos de “longa duração” que associavam o soberano à idéia de justiça, ordem, paz e equilíbrio. Afirmava José Bonifácio em Notas íntimas: “Acusam-me alguns de que plantei a Monarquia. Sim, por que vi que não podia ser de outro modo então; porque observava que os costumes e o caráter do povo eram eminentemente aristocráticos; porque era preciso interessar às antigas famílias e aos homens ricos que detestavam ou temiam os demagogos [...] Sem a monarquia não haveria um centro de força e união, e sem esta não se poderia resistir às corte de Portugal e adquirir a Independência Nacional”. Entre continuidades e rupturas dinásticas, persistências rituais e atualizações, misturaram-se valores seculares e profanos: não se abriu mão da origem européia, mas esta se combinou com um ambiente singular.
É, portanto, privilegiando essa dimensão simbólica da representação da realeza que se pode penetrar em facetas pouco estudadas, porém fundamentais na recuperação de modelos de sociabilidade até hoje presentes. Coube à monarquia brasileira seguir um trajeto ao mesmo tempo próprio e comum, que correspondeu à essência de uma cultura enxertada mas que acompanhou a diferenciação da sensibilidade local. Aí estaria “uma cópia bastante original”; uma cultura que se construiu com base em empréstimos ininterruptos, os quais, no entanto, incorporou, adaptou e redefiniu ao justapor elementos externos a um contexto novo.
Talvez seja essa a razão da pouca legitimidade inicial dos símbolos republicanos, em um país ainda atrelado à eficácia e à inserção alargada dos emblemas da realeza. O fato de os ícones da República mais bem-sucedidos – como o hino e a bandeira – estarem de alguma maneira ligados à simbologia monárquica evidencia não apenas o pequeno impacto da “invenção de tradições” republicanas, como sobretudo a penetração de uma simbologia imperial, para além dos marcos políticos oficiais.
José Murilo de Carvalho demonstrou como a mesma elite que ajudara a derrubar a monarquia lutava pela implantação de uma simbologia particular para o recém-instalado Estado republicano, sem conseguir, no entanto, impor um imaginário particular. A histótia da escolha do Hino Nacional, logo nos primórdios do novo regime, é significativa: a despeito do resultado final do apressado concurso, que já em 20 de janeiro de 1890 pretendia eleger uma nova composição para representar o país, acabou ganhando velho hino de Francisco Manuel da Silva, que nem ao menos havia entrado na competição. “Prefiro o velho!!!, teria dito o marechal Deodoro, deslocando o que ficara em primeiro lugar – o hino de Leopoldo Miguez, com letra de Medeiros e Albuquerque – e oficializando-o, no mesmo decreto, como Hino da Proclamação da República. O Hino Nacional continuava a ser o mesmo da monarquia, apesar da suspeita de que teria sido d.Pedro I seu compositor.
Mesmo a bandeira nacional, apesar das inúmeras explicações surgidas a posteriori (que falavam do verde de nossas matas e do amarelo das riquezas minerais), continuava a ostentar seus vínculos com a tradição imperial: o verde, cor heráldica da Casa Real Portuguesa de Bragança; o amarelo, cor da Casa Imperial Austríaca de Hadsburgo. Além disso, o desenho republicano reaproveitava o losango da bandeira imperial – que representava uma homenagem de d. Pedro I a Napoleão -, apenas retirando-se o brasão monárquico, com as armas imperiais aplicadas, para introduzir o lema positivista de “ordem e progresso”. Se essa versão é exata, estaríamos diante de um caso de redefinição, típico do nosso processo cultural: elementos tradicionais do armorial europeu, com seu significado preciso de homenagem aos soberanos da jovem nação, acrescidos de uma modalidade de distribuição do especo na bandeira francesa, passavam a representar nossa realidade física, destituídos de seu significado anterior. A fisionomia da bandeira republicana, considerada durante gerações como expressão autêntica de características da terra, “teria nascido de transposições, substituições e invenções, que deram ao brasileiro a idéia de simbolizar o que ele tem de mais específico”.
É certo que esses não são ícones escolhidos livremente – e nesse sentido populares – mas é certo, também, que sua recepção acaba gerando um consenso que encontra neles imagens ou representações do país. A questão seria, dessa maneira, entender não tanto o fracasso da simbologia republicana, tão bem analisado por José Murilo de Carvalho em A formação das almas, mas antes o impacto do imaginário monárquico, presente até hoje não apenas nesses elementos de retórica patriótica como em toda uma concepção de sociedade ainda impregnada da mística dos títulos de nobreza, das ordens honoríficas e dos rituais de consagração. Conforme afirma Sérgio Buarque de Holanda:A imagem de nosso país que vive como projeto e aspiração na consciência coletiva dos brasileiros não pôde, até hoje, desligar-se muito do espírito do Brasil imperial; a concepção de Estado figurada nesse ideal não somente é válida para a vida inteira da nacionalidade, como ainda não nos é possível conceber em sentido muito diverso nossa projeção maior na vida internacional”.
Nessa batalha simbólica, travada entre a República e Monarquia, melhor do que descobrir vencedores pé repensar a importância da dimensão cultural. Seguindo as pistas de Bronislaw Baczo, que aponta para a relevância do estudo de sistemas simbólicos de uma sociedade, percebemos como todo regime político estabelece em sua base um imaginário social constituído por utopias e ideologias mas também por mitos, símbolos e alegorias, elementos poderosos na conformação do poder político, especialmente quando adquirem aceitação popular.
A criação de símbolos, por sua vez, não é gratuita e arbitrária; não se faz no vazio social. Ao contrário, os símbolos são reelaborados em razão do contexto cultural em que se inserem, além de que o maior ou menor sucesso de sua manipulação encontra-se diretamente vinculado a uma “comunidade de sentidos”. Portanto, para compreendermos por que em momentos de mudança certos símbolos vingam e outros não, devemos atentar não só para a emissão como também para a recepção e divulgação, ou seja, para o consumo desses mesmos símbolos, que não é em si aleatório nem mero objeto de manipulação
Dessa maneira, se por parte das elites é possível perceber um uso quase instrumental da “figura do rei” – uma intenção muitas vezes abertamente expressa de construção de uma representação de porte nacional, por meio da oficialização e proliferação de rituais, da criação de monumentos e de um “passado” cuja continuidade temporal levaria ao Império -, já na releitura das festas populares o que está presente é a imagem mítica do rei, de um rei sagrado e religioso que nesse sentido não tem data nem lugar.
Colocar a questão nesses termos implica admitir que o significado se faz em contexto, mas também privilegiar certa singularidade cultural, uma análise sincrônica que se vale do repertório específico de cada cultura. Na fronteira entre a história e a antropologia, essa perspectiva permite pensar, ainda, em permanências e releituras – em “estruturas mentais” – e, desse modo, na razão da fortuna ou do fracasso de determinadas simbologias, igualmente manipuladas.
Muitos são os sinais do uso de uma farta simbologia por parte dessa monarquia tropical, mas é talvez na produção iconográfica e na originalidade dos rituais que se concentram, de forma mais evidente, os rastros de tal trajeto, os sinais do diálogo com a realidade externa, retraduzida em termos locais. Como veremos, essa história não começa com d. Pedro II, porém é sobre ele que incide uma quantidade maior de imagens e de representações, como se o “corpo do rei” mediatizasse essas duas instâncias: a criação política e institucional de realeza de um lado, a figura mítica, marca do imaginário popular, de outro.
Imperador de 1840 a 1889, D. Pedro II teve sua vida contada a partir de episódios repletos de dramaticidade e destacada com basse neles. Primeiro monarca nascido no Brasil, Pedro, Pedro de Alcântara foi comparado ao Menino Jesus na tradição portuguesa, revisto como Imperador do Divino na ladainha brasileira, entendido como um novo d. Sebastião pelos últimos fiéis das previsões de Vieira. Filho de Bragança, Hadsburgo e parente direto dos Bourbon, d. Pedro era reconhecido como um pequeno deus europeu, cercado por mestiços. Órfão de mãe com um ano, de pai aos dez, imperador aos catorze e exilado aos 64, no seu caminho é difícil notar onde se inicia a fala mítica da memória, quando acaba o discurso político e ideológico; onde começa a história, onde fica a metáfora.
A saída é acompanhar passo a passo as trajetórias que envolveram a figura de D. Pedro II, que de órfão da nação se transforma em rei majestático; de imperador tropical e mecenas do movimento romântico vira rei cidadão, para finalmente imortalizar-se no mártir exilado e em mito depois da morte, com vistas a recuperar não tanto a sua história, mas antes sua memória, ou melhor, a seleção de determinadas memórias nacionais. Esse é ao menos o percurso que as imagens convidam a seguir. Nesse processo, nem sempre o discurso institucional caminhou junto com a ideação mais popular do rei que dialogou com contextos ainda anteriores à independência do Brasil, ou da vinda de d. João. No entanto, durante o Segundo Reinado e mesmo na “retradução” do exílio do rei na Europa é possível perceber como o “corpo do rei” é suporte para batalhas simbólicas de ordem diversa.
É certo que d. Pedro II não centralizou todas as decisões do Império, tampouco tomou parte do conjunto de manobras. Muitas vezes foi inserido numa grande representação como parte e não como artífice. É por isso mesmo que pouco importa descobrir se o monarca foi mais ou menos culto, muito inteligente ou pouco dotado. Melhor do que personalizar é buscar os caminhos de construção desse mito de Estado, desse monarca tropical.
Portanto, é tendo como cenário o Segundo Reinado, momento fundador de um modelo de nacionalidade, que se buscará entender os mecanismos de construção simbólica da figura pública desse monarca, em suas associações com o fortalecimento do Estado. Fértil na produção de um amplo leque de imagens, o Império brasileiro se destacou em seu papel de criador de ícones nacionais – entre hinos, medalhas, emblemas, monumentos, dísticos e brasões -, assim como concentrou esforços na boa costura da imagem do monarca, que parecia simbolizar a pátria. A idéia é, portanto, recuperar meios e processos pelos quais toma forma uma grande representação de d. Pedro II e do Império brasileiro. Tendo por base uma visão alargada do processo que leva à consolidação da imagem do governante, se buscará não só as grandes instâncias de efetivação, como as pequenas e cotidianas medidas. Se o exame da iconografia oficial revela facetas das produções da elite carioca, já os rituais e comemorações indicam outras leituras, mais populares, da mesma monarquia.
A reflexão sobre a monarquia brasileira leva, assim, à reconstrução de um sistema político (ligado à elite carioca que cerca a realeza), mas também a um imaginário monárquico, percebido justamente por meio da análise de rituais, costumes e tradições. No caso, porém, é a figura do imperador que está colocada bem no meio das duas instâncias, e não há outra opção senão percorrer a sua biografia destacando, contudo, momentos e locais da edificação dessa história, quando privilegiadamente recontam-se certos episódios em detrimento de outros.
Os capítulos foram construídos, pois, com base em documentos inéditos, iconografia do período e uma vasta bibliografia sobre d. Pedro II. Se de um lado essa produção foi de grande serventia, de outro foi preciso “dribla-la”. Muitas vezes laudatórias e em alguns casos – logo após a proclamação da República – francamente contrárias, as biografias constroem uma personagem, pelo elogio ou pelo descaso, destacada de qualquer contexto. Nelas, também, é difícil entender onde começa a história, onde termina o mito. Feito mito ainda jovem, d. Pedro II nas imagens oficiais é sempre mais velho que seu pai, confusão que atrapalha até hoje as crianças na escola, mas fala igualmente de uma iconografia política que se constrói por meio da história, que lembra um pouco e esquece muito, guarda certas imagens na memória e apaga outras. [...]



É preciso entender o milagre com base no desejo do milagre, no fenômeno da crença em um poder diverso e superior à própria humanidade. O paralelo com o famoso texto de Lévi-Strauss sobre a eficácia do feiticeiro e, nesse sentido, evidente. Afinal, é essa mesma lógica que leva o autor a concluir que o que explica a cura não são os cânticos e poções do xamã, mas o fato de que um grande “xamã” é obra do consenso. “Quesalid não se tornou um grande feiticeiro porque curava seus doentes; ele curava seus doentes porque se tinha tornado um grande feiticeiro.” Dessa maneira, assim como não há por que duvidar da adesão dos monarcas – e/ou dos feiticeiros – à sua missão, é também claro que, em ambos os casos, a lógica da crença no milagre é anterior e mais forte do que o milagre em si, já que baseada em um consenso que é coletivo e simbólico. [...]


Com base em centenas de retratos da família imperial, em paisagens e imagens de instituições nacionais; no testemunho das viagens do imperador e da sua passagem por exposições universais ou visitas a estabelecimentos científicos; no registro de experimentos ou das marcas da Guerra do Paraguai, guardadas apenas nos uniformes militares... compõe-se um esforço de construção e de perpetuação de determinada memória nacional. Trata-se, portanto, não de um amontoado de imagens, mas de uma “coleção” feita de muitas lembranças e de várias lacunas. Se o Dicionário Aurélio tem razão em sua definição, estamos diante de um “conjunto ou [de uma] reunião de objetos da mesma natureza ou que têm qualquer relação entre si”. O seu coletivo revela como são pequenos os limites entre os poucos momentos de intimidade de um monarca e a sua feição oficial de estadista. Afinal, a coleção carrega não só as imagens do imperador e de sua família como os grandes temas do século XIX – as artes, o urbanismo, a arqueologia, a biologia, a botânica, a mineração, a saúde pública... – os eventos mais importantes da época e retratos de “nossa gente”.
A coleção mostra ainda o que o imperador vê e, pela falta, aquilo que não vê ou quer esquecer. É assim que, se os trópicos aparecem a todo momento, a escravidão está ausente, como figurante oculto das cenas. Com efeito, é uma certa civilização que aparece representada, selecionando uma memória e um tipo de lembrança.
Como qualquer coleção, a “de d. Pedro” guarda, também, um tipo de classificação. Não basta, porém, recuperar sua lógica original; é possível interpretar as alegorias, descobrir alterações e faze-las dialogar com os contextos a que dizem respeito. Como se verá, as imagens distinguem-se por sua técnica – xilogravura e litogravura, pinturas à óleo, aquarelas, nanquim e carvão, caricaturas e fotografias a partir dos anos 60 (entre daguerreótipos, ferrotipias ou ambrotipias) – e pelo momento a que se referem. No entanto, entre tantos retratos oficiais, imagens feitas para a divulgação no exterior, desenhos apenas rascunhados, ou as poucas cenas de maior intimidade, podemos encontrar regularidades dignas de destaque, referências que só o conjunto do material pode ofertar. Com efeito, são mais de seiscentos Pedros que nos observam, enquanto os observamos, como se pudéssemos ver não apenas o crescimento cronológico dessa personagem, mas momentos diversos de sua construção como símbolo do Estado.
Nesse processo selecionaram-se os momentos em que a atuação e presença de d. Pedro são mais evidentes. [...] Nesses momentos, fortemente pautada em uma agenda de festas, rituais e imagens, a monarquia brasileira se serviu à larga das representações simbólicas que envolvem o poder monárquico e que evocam elementos históricos de longa duração, associando o soberano à idéia de justiça, ordem, paz e equilíbrio. [...]
É assim, no privilégio à dimensão simbólica, aos mecanismos de construção da memória da monarquia brasileira, que se pode encontrar novidade nessa história tão conhecida e vasculhada pelas biografias. Tal recorte, se não permite elaborar um sistema total de explicação, introduz uma dimensão nova: o terreno mágico, sagrado e simbólico de uma realeza que, ao mesmo tempo que – nas mãos da elite local – atualizou a tradição, a fez dialogar com as representações locais – “aparatos intelectuais”, anteriores a seu estabelecimento.[...]


Como símbolo da união, a realeza parecia ser a melhor saída possível para evitar a autonomia e possível separação das províncias; sòmente a figura de um rei congregaria esse território gigantesco, marcado por profundas diferenças. É assim que as elites locais optam pela monarquia, na esperança de ver no jovem rei um belo fantoche. [...]
Frutos de muitos acordos, a originalidade e a garantia de uma emancipação monárquica, em pleno contexto americano e republicano, não eram tarefas fáceis, nem interna, nem externamente. Nesse sentido, foi fundamental a figura de José Bonifácio – futuro tutor dos filhos do monarca -, que juntamente com a elite do Centro-Sul, a qual gravitava em torno da nova corte, empenhou-se na manutenção da unidade territorial do Império brasileiro, impedindo que se repetisse o exemplo da América espanhola. Era assim que se tomavam na ex-América lusitana as medidas necessárias para que se evitasse a alternativa republicana, então considerada a “vocação natural das Américas”.
Foi por isso que, logo após a independência política de 1822, investiu-se muito no cerimonial da realeza e no estabelecimento de determinadas memórias. D. Pedro foi aclamado imperador em 12 de outubro de 1822 – data a princípio considerada mais importante que o próprio Sete de Setembro. Além disso, desejando romper com o costume português, de um lado, e influenciado pela sagração e coroação de Napoleão, em 1804, de outro, d. Pedro I envolve-se na realização de uma importante cerimônia religiosa, de origens bíblicas, e regida, com detalhes, pelo livro 1 do antigo Pontificial romano. Nesse documento estabelecia-se que os soberanos deveriam ser ungidos e sagrados no contexto solene da missa pontificial, costume que os reis portugueses haviam abolido fazia muito tempo. A cerimônia aconteceu no dia 1º de dezembro de 1822, na então Capela Imperial, sendo celebrada pelo capelão-mor d. José Caetano da Silva Coutinho, que sagrou o novo imperador e o coroou com óleo santo. Como testemunho do acontecimento ficou a grande tela de Jean Baptiste Debret, que retrata pormenorizadamente o caráter rigoroso e fiel do ritual. Por meio da alteralidade buscava-se destacar o surgimento de uma nova história, por suposto diferente da antiga metrópole portuguesa.
O novo império, contudo, não só dialogaria com a tradição: introduziria elementos da cultura local. Construía-se, a partir de então, uma cultura imperial pautada em dois elementos constitutivos da nacionalidade emergente: “o estado monárquico, portador e impulsionador do projeto civilizatório, e a natureza, como base territorial e material deste Estado”.
Com efeito, ainda em 1822, é elaborada pelo mesmo artista – que já fora responsável por criar todas as imagens oficiais do período de d. João VI – uma alegoria especialmente idealizada para o pano de boca de uma apresentação teatral que celebrava a coroação de D. Pedro primeiro imperador do Brasil. Debret, “um neoclássico de quatro costados” e discípulo direto de David, talvez em razão do sentimento social aguçado de sua escola, encontra empecilhos para dialogar com um contexto tão diverso de sua França revolucionária. Segundo Rodrigo Naves, o elogio da virtude e da exemplaridade deveria se mostrar por meio da forma ideal e da caracterização do herísmo neoclássico. No entanto, em face do cotidiano da escravidão e de uma corte transplantada, parecia difícil traduzir essas “idealidades formais para uma realidade totalmente estranha aos pressupostos”.
Nesse caso porém, a alegoria deveria agradar; nela o Império do Brasil apareceria com toda a sua pompa mas também originalidade. Além de estar confiado a Debret todo o programa de festas, ficou sob a responsabilidade do artista esse primeiro símbolo oficial da realeza brasileira. Diz Debret: “[...] Em tais circunstâncias, sentiu o diretor do teatro mais do que nunca a necessidade de substituir a pintura de seu antigo pano de boca representando um rei de Portugal cercado de súditos ajoelhados. Pintor de teatro, fui encarregado da nova tela, cujo bosquejo representava a fidelidade geral da população brasileira ao governo imperial, sentado em um trono coberto por uma rica tapeçaria estendida por cima de palmeiras”.
Tendo passado pela inspeção e aprovação do imperador e de José Bonifácio, a pintura sintetizava uma série de elementos dispersos da nova nacionalidade. Nada melhor do que dar voz à própria descrição reveladora do “discípulo de David”:

[...] O governo imperial é representado, nesse trono, por uma mulher sentada e coroada, vestindo uma túnica branca e o manto imperial brasileiro de fundo verde ricamente bordado a ouro; traz no braõ esquerdo um escudo com as armas do Imperador e com a espada na mão direita sustentando as tábuas da Constituição brasileira. Um grupo de fardos colocados no envasamento é em parte escondido por uma dobra do manto, e uma cornucópia derramando frutas do país ocupa um grande especo no centro dos degraus do trono. No primeiro plano, à esquerda vê-se uma barca amarrada e carregada de sacos de café e de maços de cana-de-açúcar. Ao lado, na praia, manifesta-se a fidelidade de uma família negra em que o negrinho armado de um instrumento agrícola acompanha a sua mãe, a qual, com a mão direita, segura vigorosamente o machado destinado a derrubar as árvores das florestas virgens e a defende-las contra a usurpação, enquanto com a mão esquerda, ao contrário, segura ao ombro o fuzil do marido arregimentado e pronto para partir [...] Não longe uma indígena branca, ajoelhada ao pé do trono e carregando à moda do país o mais velho de seus filhos, apresenta dois gêmeos recém-nascidos para os quais implora a assistência do governo [...] Do lado oposto, um oficial da marinha [...] No segundo plano um ancião paulista, apoiado a um de seus jovens filhos que carrega o fuzil a tiracolo, protesta fidelidade; atrás dele outros paulista e mineiros, igualmente dedicados e entusiasmados, exprimem seus sentimentos de sabre na mão. Logo após esse grupo, caboclos ajoelhados mostram com sua atitude respeitos o primeiro grau de civilização que os aproxima do soberano. As vagas do mar, quebrando-se ao pé do trono, indicam a posição geográfica do Império.

A alegoria de Debret representa, sem dúvida, “o Estado corporificado no trono imperial, que cumpria uma missão de submeter a seu domínio um outro diferente de si. Cumpria ainda uma missão civilizatória diante deste outro”. Mas não basta ficar na análise exclusivamente política dessa imagem. É possível dizer que estamos diante de uma “grande inauguração”: a de uma representação mais ou menos formalizada de uma monarquia que aqui se instala, buscando tradução em elementos tropicais.
Se o desenho já não fosse em si evidente, a descrição de Debret cuidaria do resto. Valendo-nos de ambos vemos como o pano de boca de Debret condensa, em uma só cena, elementos fundamentais da nova identidade. O trono, bem no centro da cena, garante o olhar em direção à representação do imperador – com o P e a coroa logo acima da figura: a imagem de uma mulher que carrega a Constituição, no caso o símbolo maior do progresso ocidental.
A tela é toda concebida com base na idéia de que uma nova civilização se montava, decididamente nos trópicos. Negros em atitude de fidelidade dividem a cena com uma indígena (uma autóctone) de pele branca mas que carrega os filhos “ao modo do país”. Selvagens ao fundo, com suas flechas, declaram lealdade ao lado dos paulistas, mineiros e da Marinha, em plano mais evidente. Caboclos recuperam, por meio da imagem, “o grau de civilização” a que podem chegar. As frutas, bem no centro, são todas tropicais, além das palmeiras e da vegetação, que compõem um quadro decididamente exótico. Por fim, as vagas do mar deságuam no grande trono, assim como o Atlântico, que nos separava e unia à “civilização”. Enfim, vindo de uma artista que se esmerou em elaborar uma série de símbolos para essa corte tão singular – entre retratos, uniformes e condecorações -, o pano de boca aparecia como um forte ícone de um Estado criado sob o signo da diferença.
Destacando a monarquia brasileira de sua matriz luzitana, os novos símbolos da terra ganham um caráter inaugural, como se toda a história começasse no ato que constituía a nação independente. Unidas e irmanadas por meio da realeza – representada pela figura da mulher sentada no trono com o texto da Lei nas mãos -, uma nação miscigenada arma-se para defender a monarquia constitucional, legitimada pela adesão de “seu povo”. No entanto, apesar dessa exuberância de detalhes, na imagem de Debret, como afirma Naves, “há uma rigidez mal resolvida, a produção de uma grandiosidade meio naif fiel talvez ao espírito acanhado da monarquia brasileira, mas muito limitada enquanto pintura”.
Não havia como esquecer a existência da escravidão, que por sua vez tornava a monarquia brasileira absolutamente singular. Na época, 45,6% de um total de 79.321 pessoas eram escravos no Rio de Janeiro, dando às ruas um colorido especial. Nesse Império, o universo do trabalho resumia-se ao mundo dos escravos. Vendedores ambulantes, negras quituteiras, negros de ganho oferecendo-se como pedreiros, barbeiros, alfaiates, funileiros e carpinteiros eram figuras obrigatórias nas ruas da cidade.
Mas a vivacidade das ruas não correspondia à estrutura da sociedade, hierarquizada, violenta e desigual. Aí se apresentava a grande contradição, que não se limitava ao traço de Debret; como afirmar a imagem civilizada e constitucional dessa monarquia ao lado da realidade escravocrata?
Não obstante, nas imagens oficiais era a mistura de elementos que dava colorido à jovem nação que se emancipava. Cem anos depois, um artista popular anônimo, mostrava como era forte o imaginário desses momentos inaugurais. No quadro a seguir, d.Pedro I aparece ao lado de José Bonifácio, o artista Debret logo atrás. Trata-se da elaboração dos emblemas do novo país, mas o que mais interessa é a união dos personagens. Perto das figuras oficiais uma negra escrava (ajoelhada) e um indígena com expressão pensativa observam a grande cena. Bela imagem de congraçamento, nessa releitura popular de inícios do século XX.


O ÓRFÃO DA NAÇÃO:
“O CÉU SABE O QUE FAZ”

Madrugada alta de 2 de dezembro de 1825. Nesse dia a corte do Rio de Janeiro acordou com o estrondo das salvas em fortalezas e navios. Nascera às duas e meia o príncipe herdeiro de todas as esperanças nacionais, ou ao menos das elites brasileiras, tão preocupadas com o fantasma do desmembramento do país.
Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga era um nome tão grande quanto as aspirações que giravam em torno desse “pequeno príncipe” de 58 centímetros: o primeiro a nascer em território nacional. O imperador vinha ao mundo antes do menino, ou parafraseando Roberto Da Matta: “d. Pedro II não nasceu, foi fundado; tornou-se patrimônio nacional”; já nasceu como “um rei autóctone”.
O jornalista Pedro Plancher, do Spectador Brasileiro, na ocasião, apressava-se em vincular a data de nascimento do príncipe-herdeiro à sorte eminente: “A anarquia morreu na França no dia 2 de dezembro; a coroa de Carlos Magno vingou nesse dia os atrozes insultos feitos aos netos de Henrique IV. O céu sabe o que faz”.
O herdeiro do trono trazia no nome, assim como seu pai, a homenagem ao santo padroeiro: Pedro de Alcântara. A Casa de Bragança era devota de certos santos e entre eles estava esse, um santo de origem espanhola, sempre associado aos doentes e canonizado logo após a Contra-Reforma.
Antes mesmo do nascimento de Pedro II, estavam dadas as ordens para os procedimentos que participariam e festejariam a encarnação do primeiro príncipe brasileiro. Três tiros de foguete anunciariam a chegada de um menino; fosse menina, apenas dois. E nos dias seguintes, até o batizado, se fariam demonstrações festivas com repiques de sinos, salvas e luminárias. Desse modo, seria impossível ignorar que a monarquia instalada pelos portugueses em terras tropicais – recém-libertas de seu jogo colonizador pelo próprio príncipe português – se revigorava, ressurgindo num ad eternum e dessa vez muito bem enraizada. E apesar de já nascer sob uma monarquia constitucional, o menino herdeiro da Coroa era apresentado à nação justificado pela ação divina de míticos anjinhos.
Com efeito, a imperatriz d. Maria Leopoldina de Hadsburgo (arquiduquesa da Áustria e filha de Francisco I, imperador da Áustria) e d. Pedro I (da Casa Real Portuguesa de Bragança) já tinham quatro filhas e “imploraram aos céus” para que daquela vez viesse o tão esperado varão. Depositavam-se nele as esperanças de continuidade do recém-fundado Império.
Não eram poucas, portanto, as promessas atribuídas a essa personagem que teria sua vida toda coberta por uma aura mística, resultado de uma concepção divina herdada da monarquia medieval européia, mas, sobretudo, do contexto político e cultural local. Pela linha paterna, o príncipe imperial descendia de reis e antepassados ilustres, imortalizados pela prosa portuguesa. D. Pedro era o oitavo duque de Bragança, cuja família estava entrelaçada com os Capetos da França.
Pela linha materna, d. Pedro era ligado ao imperador Francisco I, da Alemanha, da Áustria, da Hngris e da Boêmia, ele mesmo filho de Leopoldo II, imperador da Alemanha e irmão de Maria Antonieta, mulher de Luís XVI. Descendia também de Francisco José, duque de Toscana, marido de Maria Teresa, imperatriz da Alemanha, da Áustria e da Boêmia. Sua genealogia – como aliás a de todos os monarcas – ia longe: chegava a Santo Estevão, rei da Hungria; a Filipe II, a Filipe IV; aos reis de Aragão e Castela, e aos reis da França.
Carregando a criança imperial, portanto, a herança dos Bourbon, dos Hadsburgo e dos Bragança, seu batizado cercou-se de uma mística incomum. Os “fantasmas” de tantos reis, imperadores e aventureiros, príncipes ilustrados, românticos ou melancólicos, acompanhariam a vida desse príncipe de tanta tradição européia, aliados ao imaginário local, impregnado pela lógica das festas populares, em que a realeza era quase um emblema.
Mas, já na primeira infância, a representação do “órfão da nação” começa a se delinear. Na verdade, se nos meses seguintes à independência d. Pedro I foi aclamado por conta de sua alta linhagem, juventude (o rei fora elevado ao trono com 24 anos) e até em virtude da virilidade, comprovada por suas histórias amorosas, essa situação iria logo se modificar. O Império não andava nada bem, entre outros motivos, por causa do voluntarismo do jovem imperador d. Pedro I, pai de Pedro de Alcântara. Os reflexos da imposição da constituição de 1824 se faziam sentir, sobretudo em razão do artigo 98, que criava ao lado dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário um quarto poder: “O poder moderador é a chave de toda organização política, e é delegado privativamente ao imperador como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente, vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos”. [...]


Por outro lado, em relação a d.Pedro, começava a ficção de um menino de seis anos que permanecia sob a orientação de dirigentes e tutores. Transformado mais uma vez em órfão, o “pupilo da nação” teve que ser colocado em uma pequena bancada para que, assustado, pudesse observar a multidão que o aclamava. [...]


Como em um passe de mágica, a realidade virava mito e o mito realidade. É isso que deixam transparecer as biografias mais tradicionais, que descrevem a partida de D. Pedro I envolta em um clima de grande emoção, além de destacarem frases de efeito da jovem madrasta, d. Amélia, que entre lágrimas pedia “às mães brasileiras que cuidassem de seu pequeno, assim como zelavam por seus próprios filhos”, ou declamava: “Adeus querido imperador, vítima da tua grandeza antes que a saibas conhecer” (carta de 25 de abril de 183l). [...]


[...] O imperador iniciava sua vida cívica envolto de um suntuoso teatro, o da sua precoce maturidade. As roupas de adulto, os gestos maduros, as lições avançadas, a fama de filósofo, tudo contribuía para fazer do monarca um personagem excepcional, estranho a si mesmo. Talvez o momento em que essa situação se evidenciou de forma mais clara tenha sido o ritual de sagração e coroação de d. Pedro II, em 1841. Um espetáculo jamais visto estava para acontecer. Este deveria ser mesmo “memorável”, no sentido de imprimir uma memória; fazer guardar, por meio do ritual, o novo início de uma história cívica nacional. Nele, duas dimensões se manifestariam: o caráter estratégico imposto pelas elites, o lado maravilhoso e sacro que envolve a coroação dos reis.